Home RSS Feed Siga-me Siga-me Escreva-me

Mensagem de Ano Novo Personare





"NÃO VOU LHE DESEJAR
UM FELIZ ANO NOVO.

Não vou desejar que nesse ano encontre paz e felicidade permanentes. Não vou desejar que supere todas as suas metas e vença todos os desafios, encontre alegria no amor, fique rico e seja sempre a pessoa mais linda
e simpática do planeta (mas vou desejar saúde. Porque com saúde não se brinca).


Não vou desejar que 2012 seja o melhor ano de todos os anos de sua vida. 365 dias é muito pouco para todas as conquistas, todos os desafios e tudo o mais que deseja fazer, ser e ter.

Esse ano, quero desejar outra coisa. Desejo que se lembre de todas as conquistas que teve. Que olhe para trás e veja tudo o que foi aprendido, se lembre de todas as pessoas que apoiaram e quem você foi em todas essas situações.
Que determine a vida que quer levar. De repente não é a que está levando agora, a que seus pais querem que leve. Ou seu amor. Ou seus amigos. Ou sua comunidade. Pare e pense na vida que você quer ter.

Escolha as pessoas que lhe acompanharão. Aquelas que agregam, que lhe dão apoio em todos os momentos. Escolha as que quer
ao seu lado e querem estar ao seu lado. Descubra o que lhe dá prazer e trabalhe
para que seja constante em seu dia-a-dia.
Faça o que você ama e ame o que faz.

Reconheça as características pessoais que não gosta e aprenda a mudá-las (ou aceitá-las). Você pode ser uma pessoa melhor todos os dias. Por que quem você quer ser já está dentro de você. Então, procure. Insista e não desista.
Sim, um ano inteiro é muito pouco para tantos desejos. Então, vamos lá. Procure dentro de você a força que precisa. Suspire fundo. Comece. Agora.
Sua vida está esperando.

Feliz vida para você."

(PERSONARE)
Leia Mais ►

Maria, você sabia?



Mary did you know?

Maria, você sabia que o seu bebê
Maria, tu sapevi che il tuo Bambino 

Iria andar sobre as águas?
Um giorno avrebbe camminato sulle acque?

Maria, você sabia que o seu bebê
Maria, tu sapevi che il tuo Bambino

Iria salvar os nossos filhos e filhas? 
Avrebbe salvato i nostri figli e figlie?

Você sabia que o seu bebê
Tu sapevi che il tuo bambino


Veio para fazer de você uma nova criatura?
 È venuto per fare di te uma nuova creatura?


Essa criança a quem você deu a luz 
Questo Bambino che tu hai dato alla luce

Em breve irá libertar você.
In breve ti liberarà?

Maria, você sabia que o seu bebê
Maria, tu sapevi che il tuo Bambino 

Irá dar vista ao cego?
Avrebbe dato la vista  al ceco?

Maria, você sabia que o seu bebê
Maria, tu sapevi che il tuo Bambino

Irá acalmar a tempestade com a mão?
Avrebbe calmato la tempesta?

Você sabia que o seu bebê
Tu sapevi che il tuo Bambino


Tem andado onde anjos trilharam?
È andato dove camminano gli angeli?
 
Quando você beija o seu pequeno bebê
Quando baci il tuo piccolo Bambino

Você beija a face de Deus!
Tu baci il volto di Dio?

Oh, Maria, você sabia?
Ò, Maria, tu sapevi?

Oh, Maria, você sabia?
Ò, Maria, tu sapevi?

O cego irá ver, o surdo irá ouvir,
Il ceco vedrà, il sordo ascolterà,

O morto irá viver outra vez.
Il morto vivrà di nuovo.

O coxo irá saltar, o mudo irá falar
Lo storpio salerà, il muto parlerà

Dos louvores do Cordeiro!
Delle lodi dell´Agnello!

Maria, você sabia que o seu bebê
Maria, tu sapevi che il tuo Bambino


É Senhor de toda a criação?
È Signore di tutto il creato?

Maria, você sabia que o seu bebê
Maria, tu sapevi che il tuo Bambino

Irá um dia governar as nações?
Um giorno governerà tutte lê nazioni?

Você sabia que o seu bebê
Tu sapevi che il tuo Bambino

É o Cordeiro perfeito do Céu?
È l´Agnello perfetto del Cielo?

Essa Criança adormecida que você esta segurando
Questo bambino addormentato che tu hai in braccio

É o grande EU SOU!
È il grande IO SONO!


Letra: Mark Lowry
Música: Buddy Greene
Intérprete - Hayley Westenra

Tradução livre para português 
Rev. Rogério Assimos

Leia Mais ►

Um Conto de Natal - A Christmas Carol



Texto adaptado da obra de Charles Dickens


(narradores entram em cena como se fossem uma trupe teatral, que chega em uma praça para contar uma história)

Narrador 1

Marley estava morto, isso para começar a história. Nesse ponto não resta a menor dúvida.

Narrador 2

O registro de seu sepultamento foi assinado pelo padre, pelo ajudante, pelo coveiro e pelo carpidor-mor.

Narrador 3

Quem assinou foi Scrooge: e o nome de Scrooge era uma garantia, um pilar da sociedade.

Narrador 4

E Scrooge, sabia que ele estava morto?

Narrador 5

Claro que sabia. Como poderia ser de outro modo? Scrooge e ele foram sócios durante sei lá quantos anos. Scrooge era seu único testamenteiro, seu único administrador, único mandatário, único legatário residual, seu único amigo e único carpidor.

Narrador 6

O fato de ter mencionado o sepultamento de Marley nos leva mais uma vez ao ponto de partida. Não resta a menor dúvida de que Marley estava morto.

Narrador 7

Esse ponto deve ser entendido perfeitamente, do contrário, nada de esplêndido poderá sair da história que vamos relatar aqui.

Narrador 1

Se não estivéssemos de todo convencidos de que o pai de Hamlet havia morrido antes do início da peça, o fato de ele querer dar uma caminhada sobre as muralhas de seu próprio castelo numa noite de vento leste não teria nada de especial. Seria como qualquer cavalheiro de meia idade que saísse no ímpeto, depois de escurecer, num local um tanto ventoso para, literalmente, estarrecer a cabeça frouxa do filho dele.

Narrador 2

Scrooge nunca tirou o nome do velho Marley da tabuleta. Lá estava ele, anos depois, no alto da porta do armazém: Scrooge e Marley.

Narrador 3

A firma era conhecida pelo nome de Scrooge e Marley. Às vezes os novatos na área chamavam Scrooge de Scrooge, às vezes de Marley, mas ele respondia aos dois nomes: para ele dava tudo no mesmo.
(Enquanto descrevem Scrooge vão vestindo a roupa em um dos narradores)

Narrador 4

Ah, mas aquele Scrooge era um sujeito muito pão-duro!

Narrador 5

Aquele velho era um verdadeiro poço de perfídia, sovinice, malandragem, oportunismo e inveja!


Narrador 6

O frio que havia dentro dele gelava sua velha fisionomia, pinçava-lhe o nariz pontudo, engelhava seu rosto, enrijecia o passo, fazia seus olhos ficarem vermelhos, tornava azuis os lábios finos e se manifestava, cortante, em sua voz áspera.

Narrador 7

Aonde quer que ele fosse, sempre levava consigo sua própria temperatura gélida. Dia após dia, o ano inteiro, congelava seu escritório, e no Natal não derretia nenhum grau.

Narrador 1

Ninguém jamais o interpelava na rua para dizer, com ar de agradável surpresa: “Meu querido Scrooge, como você tem andado? Quando vai passar lá em casa para me fazer uma visitinha?”

Narrador 2

Nunca um mendigo lhe implorava um trocado, nunca uma criança lhe perguntava as horas, nunca um homem ou uma mulher, em toda a vida dele, pedia a Scrooge que lhes mostrasse o caminho para esse ou aquele lugar.

Narrador 4

Mas Scrooge não dava a mínima! Era daquilo mesmo que gostava.

Narrador 3

Ir avançando pelos caminhos populosos da vida mantendo à distância toda simpatia humana. Scrooge era aquilo que os que entendem dessas coisas chamam “doido”.

Narrador 5

A porta do escritório de Scrooge estava aberta para que ele pudesse ficar de olho em seu ajudante, que, num minúsculo quartinho ao lado, um verdadeiro cubículo, copiava cartas.
(Enquanto narra Bob e Scrooge tomam seu lugar)

Sobrinha

Feliz Natal, tio! Deus o proteja!

Scrooge

Ora! Besteira!

Sobrinha

O Natal uma besteira, tio? O senhor não pode estar falando sério!

Scrooge

Pois estou sim! Ora, Feliz Natal!... Que direito você tem de estar feliz? Que razões você me apresenta para estar feliz? Você é uma pobretona!

Sobrinha

Ora, tio! Que direito o senhor tem de ser soturno, de ser melancólico? O senhor é um ricaço!

Scrooge

Ora! Besteira!

Sobrinha

Não se zangue, tio!

Scrooge

Como não vou me zangar, se vivo num mundo de imbecis como este? Feliz Natal? Chega dessa historia de Feliz Natal! O que é o Natal pra você senão uma oportunidade de pagar suas contas sem dinheiro, uma oportunidade de ficar um ano mais velho e nem uma hora mais rico?!! Se eu tivesse o poder de decidir, todo imbecil que aparecesse dizendo Feliz Natal, seria fervido juntamente com seu próprio pudim de Natal, para depois ser enterrado com um ramo de azevinho trespassando seu coração. Seria ótimo!

Sobrinha

Tio!

Scrooge

Sobrinha! Passe o Natal do jeito que achar melhor e me deixe passar o meu em paz.

Sobrinha

Passar o Natal? Mas o senhor não passa Natal nenhum!

Scrooge

Pois então deixe que eu esqueça o Natal! Grande bem que ele pode lhe fazer! Grande bem que ele já lhe fez!

Sobrinha

Ora! Tio, o Natal é uma época de alegria, uma época gentil, de perdão, de caridade e de prazer: a única época que eu saiba, no longo calendário do ano, em que homens e mulheres, de comum acordo, parecem abrir sem cautela seus corações fechados e ver os menos favorecidos como verdadeiros companheiros de viagem, e não como criaturas de outra raça dedicadas a outros trajetos. E embora o Natal jamais tenha posto uma raspadinha de ouro ou de prata que fosse no meu bolso, estou convencida de que ele me fez bem e que ainda está fazendo.Por tudo isso, Deus abençoe o Natal!!
(Ajudante no cubículo aplaude)

Scrooge

Você aí, se eu voltar a ouvir algum barulhinho, fique sabendo que vai poder se distrair muito no Natal, porque vai ficar sem emprego. (voltando-se para a sobrinha)

Sobrinha

Não se zangue! Deixe para lá! Venha jantar conosco amanhã.

Scrooge

Sim... pode esperar sentada.

Sobrinha

Mas, por quê?

Scrooge

Por que você se casou?

Sobrinha

Porque me apaixonei.

Scrooge

Porque se apaixonou! (grunhiu Scrooge) Ora! Passe bem.

Sobrinha

Mas tio, antes de eu casar o senhor também nunca foi me visitar. Para que inventar essa desculpa agora?

Scrooge

Passe bem.

Sobrinha

Não quero nada do senhor. Não estou lhe pedindo nada! Por que não podemos ser amigos?

Scrooge

Passe bem!

Sobrinha

Sinto muito, sinceramente, encontrá-lo indisposto desse jeito. Nunca entrei em nenhuma briga com o senhor, mas quis fazer essa tentativa em homenagem ao Natal, e juro que vou manter meu bom humor de Natal até o fim. De modo que Feliz Natal, tio!

Scrooge

Passe bem!

Sobrinha

E próspero Ano Novo!

Scrooge

Passe bem!
(Sobrinha sai, antes cumprimenta o ajudante)

Scrooge

Aquele é outro. Meu ajudante, ganhando quinze shillings por semana, com mulher e filhos, falando em Feliz Natal. Ainda vou parar no hospício!
(Entram duas pessoas)

Scrooge

Oh! Fregueses... deixe que eu atendo Sr. Cratchit. O que desejam os dois cavalheiros?

Cavalheiro 1

Scrooge e Marley, penso eu, com quem tenho o prazer de estar falando, com o senhor Scrooge ou com o senhor Marley?

Scrooge

O senhor Marley morreu há sete anos. Morreu há sete anos, exatamente nesta data. Bem, o que desejam os dois cavalheiros?

Cavalheiro 1

Estamos solicitando doações para os indigentes e desvalidos.

Scrooge

Para quem?

Cavalheiro 2

Pedimos para os pobres sr...

Cavalheiro 1

O senhor sabe que é nessa época que a pobreza mais sofre...

Cavalheiro 2

Então, com quanto o senhor vai contribuir?

Scrooge

Com nada!!

Cavalheiro 2

Suponho que o sr. gostaria de contribuir anonimamente então...

Scrooge

Ora!! Não cultivo festejos natalinos e não atenho meios para proporcionar festejos aos indolentes. Eu contribuo para manter as instituições, e é a elas que as pessoas que estão passando por muita necessidade devem recorrer.

Cavalheiro 1

Muitas delas não têm como recorrer a essas instituições, muitas delas prefeririam morrer a fazê-lo.

Scrooge

Se essa gente preferiria morrer, é melhor que façam exatamente isso, diminuindo um pouco o excedente populacional.

Cavalheiro 2

Mas, senhor...

Scrooge

Bem, eu imagino que se derem dinheiro para os pobres, eles não serão mais pobres. E se eles não forem mais pobres, vocês não terão mais que pedir dinheiro para eles.
Cavalheiro 2 (tenta interromper)
Não, mas...

Scrooge

 E se não tiverem mais que pedir dinheiro para eles, então vão perder o emprego. Por favor, cavalheiros, não me peçam para eu tirar seus empregos numa véspera de Natal.

Cavalheiro 1

Ora, não lhe pediríamos isso, Sr. Scrooge.

Scrooge

Então, eu sugiro que vão andando.
(Scrooge olha para o relógio, desce da banqueta. Hora de fechar. Ajudante sopra a vela e põe o chapéu)

Scrooge

Amanhã você pretende tirar folga o dia inteiro, imagino.

Bob

Se não lhe causar transtorno, senhor.

Scrooge

Causar transtorno, causa, e além disso não é direito. Se eu fosse lhe descontar meia coroa pela falta, o senhor iria achar que tinha sido explorado, aposto! (ajudante sorri sem vontade) Só que o senhor não acha que eu sou explorado quando lhe pago seu salário por um dia em que o senhor não trabalhou.

Bob

Mas isso é apenas uma vez por ano.

Scrooge

Que desculpa mais esfarrapada para assaltar o bolso de um vivente todo dia 25 de dezembro! Mas eu imagino que não tenho como impedi-lo de folgar o dia inteiro amanhã. Então esteja aqui depois de amanhã bem cedinho! (os dos saem. Música)

Narração

Scrooge come seu jantar melancólico na melancólica taverna aonde ia todo dia, e, depois de ler todos os jornais e distrair-se o resto da tarde com o livro-caixa, foi para casa dormir. Morava no apartamento que um dia pertencera a seu defunto sócio.
(Música, mudança de cenário. Casa de Scrooge)
(Scrooge em sua poltrona, cena do aparecimento do espírito de Marley onde ele vai ser seguido pela sombra de Marley)

Marley

Ebenezer Scrooooge!!!

Scrooge

O que você quer de mim?

Marley

Muito!

Scrooge

Quem é você?

Marley

É Melhor você perguntar quem eu era.

 Scrooge

Quem era você então?

Marley

Em vida eu era seu sócio, Jacob Marley. Você não acredita em mim.

Scrooge

Não mesmo, isso é impossível... você morreu há sete anos!

Marley

Que outra prova você gostaria de ter de minha realidade, além da que lhe oferecem seus sentidos?

Scrooge

Sei lá.

Marley

Por que você duvida de seus sentidos?

Scrooge

Porque... qualquer coisinha os afeta. Uma ligeira dor de barriga já interfere. Quem sabe você não passe de um pedaço de carne mal digerido, um borrifo de mostarda, uma migalha de queijo, um fragmento de batata mal cozida. Seja lá o que você for, acho que tem mais de feijão do que de caixão.

Marley

Não me reconhece, Scrooge, sou eu Jacob Marley.

Scrooge

Marley, é você mesmo?

Marley

Ebenezer, lembra-se, quando era vivo, roubava das viúvas e tapeava os pobres?

Scrooge

É, e tudo no mesmo dia. Você tinha classe, Jacob.

Marley

É, eu tinha. (cai em si e muda o tom) Não, não. Eu estava errado e agora sou forçado a carregar essas correntes pesadas. Não posso repousar, não posso ficar aqui, não posso demorar-me em lugar nenhum. Eu jamais fui além do escritório onde guardamos nosso livro-caixa.

Scrooge

Por que você está acorrentado Marley?

Marley

Uso a corrente que forjei na vida. Construí esta corrente elo a elo, metro a metro, prendi à minha cintura, por livre e espontânea vontade, e por livre e espontânea vontade passei a usá-la. Ela não está parecendo bem familiar a você? A sete Natais sua própria corrente já era tão pesada e tão comprida quanto a minha. De lá para cá, você continuou trabalhando nela.

Scrooge

Jacob! Velho Jacob Marley, diga-me alguma coisa para me consolar!!

Marley

Ouça bem o que lhe digo! Passei esses anos todos sem repouso, sem paz. Incessantemente torturado pelo remorso. É nesta época do ano que mais sofro. Por que eu tive de passar pelo mundo em meio a meus semelhantes sempre de olhos baixos, sem jamais erguê-los para aquela Estrela abençoada que conduziu os Magos àquela pobre estrebaria? Não havia lares pobres para onde Sua luz pudesse ter me conduzido? Não esqueça o que estou lhe dizendo. Meu tempo está quase esgotado.

Scrooge

Não vou esquecer. Mas não seja cruel comigo! Não fique dando voltas no assunto, Jacob, eu lhe imploro.

Marley

Como é possível que eu apareça diante de você sob uma forma visível? Essa é uma coisa que não sei explicar. Quantas e quantas vezes sentei-me invisível às suas costas! Essa parte de minha penitência não é das mais fáceis. Estou aqui esta noite para avisá-lo de que você ainda tem uma possibilidade e uma esperança de não ficar assim como eu.

Scrooge

Você sempre foi um bom amigo para mim, obrigado.

Marley

Você será visitado por três espíritos.

Scrooge

É essa a possibilidade e esperança que você mencionou, Jacob?

Marley

É.

Scrooge

Mas... acho que prefiro não tê-las.

Marley

Sem a visita dos três espíritos, você não vai ter como evitar o caminho que estou percorrendo. Aguarde o primeiro deles esta noite, quando o sino der uma hora. Ouça, faça o que mandar. Senão suas correntes serão ainda mais pesadas. Adeus, Ebenezer.

Scrooge

Espíritos! Bobagem.
(Scrooge, com sua vela olha procurando alguma coisa e depois senta-se na poltrona. Em seguida toca o sino e ocorre a mudança de cenário)

Espírito

Bem eu acho que já é hora.

Scrooge

Quem é você?

Espírito

Eu sou o Espírito do Natal Passado. Venha Scrooge, já é hora de ir. Vamos visitar seu passado.
(Música. Mudança de cenário. Aparece palco das marionetes)

Espírito

Você está lembrando do caminho?
Scrooge
Se estou lembrando? Poderia ir até lá de olhos fechados. Deus do céu, foi aqui que eu me criei. Aqui eu fui criança!

Espírito

Que estranho ter esquecido durante tantos anos.

Scrooge

Olhe, é a minha escola. Todos meus amigos estão indo para casa. É Natal.

Espírito

Mas a escola não está totalmente vazia. Uma criança solitária, esquecida pelos amigos, ficou por lá.
(Aparece a marionete da criança sozinha)

Scrooge

Sou eu... coitado do menino. (Cena das marionetes. Scrooge menino com sua irmã)

Irmã

Vim buscar você, vamos para casa, querido irmãozinho! Para casa!!

Menino

Para casa, pequena Fan?

Irmã

É. Para casa, e para ficar. Para casa, para todo o sempre! Papai está tão mais amoroso do que era antes, nossa casa está um paraíso. Uma bela noite, ele falou comigo com tanto carinho que eu criei coragem de pedir mais uma vez que você voltasse para casa, e ele disse que sim, que você podia, então vim buscá-lo. Vamos para casa.

Espírito

Sempre muito delicada, essa menina! Qualquer ventinho poderia abatê-la! Mas que grande coração o dela!

Scrooge

É verdade. Você tem razão. Não posso contestá-lo, Espírito.

Espírito

Morreu já adulta, depois de ter tido filhos, parece-me.

Scrooge

Uma filha.

Espírito

É verdade. Sua sobrinha!

Scrooge

É. Agora percebo como ela é parecida com sua mãe, a pequena e doce Fan. (Música de festa. Mudança de cenário das marionetes. Entram um homem e uma mulher)

Scrooge

Espírito, acho que conheço esse lugar. É a fábrica do Sr. Fezziwig!   Ah, eu nunca mais trabalhei para um homem tão bom. Olha lá, o velho Fezziwig em pessoa e todos os meus melhores amigos. (música)

Sr. Fezziwig

Hei, vocês aí! Ebenezer! Dick! Olá!  Olá, meus rapazes! Chega de trabalho por hoje. Véspera de Natal, Dick. Natal, Ebenezer! Vamos fechar o estabelecimento, vamos ligeirinho antes que eu conte até três. Vamos lá, meus rapazes, preciso de muito espaço livre aqui dentro! (música animada, dança das marionetes)

Narração

Durante esse tempo todo, Scrooge se comportara como um homem que tivesse perdido a razão. Seu coração e sua alma estavam lá, participando da cena, estavam com a pessoa que ele havia sido. Scrooge lembrava-se de tudo, desfrutava de tudo, tomado por uma agitação estranhíssima.

Espírito

Tão pouca coisa para essa agente tola mostrar tanta felicidade.

Scrooge

Pouca coisa!

Espírito

Não é verdade? Ele gastou umas poucas libras de seu dinheiro mortal, umas três ou quatro, não mais. Será que é tanto assim, para merecer todos esses elogios?

Scrooge

Mas não é isso. Não é isso Espírito. Ele tem o poder de nos tornar felizes ou infelizes. De deixar nosso trabalho leve ou cansativo, um prazer ou um fardo. Digamos que seu poder está todo em palavras, em coisas tão minúsculas e insignificantes que seria impossível numerá-las, ou somá-las: E daí? A felicidade que ele proporciona é tão grande que é como se valesse uma fortuna.
(Scrooge pára e olha para o espírito)

Espírito

Qual é o problema?

Scrooge

Nada de especial.

Espírito

Acho que aconteceu alguma coisa.

Scrooge

Não. Nada. Eu gostaria de dizer uma ou duas palavrinhas agora ao meu ajudante, só isso.
(Apaga luz)

Espírito

Venha depressa, meu tempo está acabando.
(Luz nas marionetes)

Scrooge

Isabel. Ah, a adorável Isabel. Eu me lembro de como estava apaixonado por ela.

Espírito

Mas, em dez anos, aprendeu a amar outra coisa.

Isabel

Ebenezer. Você ainda gosta de mim?

Scrooge marionete

Por que você pergunta isso?

Isabel

Porque eu acho que outro amor tomou meu lugar em sua vida.

Scrooge marionete

Mas que amor é esse?

Isabel

Você não é mais o mesmo, Ebenezer. Vi suas aspirações mais nobres caírem uma a uma, até que sua principal paixão, o lucro, o ouro, tomou conta de você. Não é mesmo?

Scrooge marionete

E daí? Admitindo que seja verdade, que adquiri toda essa sabedoria, qual o problema? Não mudei em relação a você! Mudei?

Isabel

Nosso trato é muito antigo. Foi celebrado quando os dois éramos pobres e não nos incomodávamos com isso. Você mudou. Na época em que fizemos nosso trato, você era outro homem.

Scrooge marionete

Era uma criança (impaciente)

Isabel

Seus próprios sentimentos lhe dizem que você não era o que é hoje. Hoje, parece que jamais houve nada entre nós.
(Scrooge desce da escada e fala à marionete)

Scrooge

Fale alguma coisa. Não deixe ela ir embora assim.

Isabel

Desejo-lhe felicidade na vida que escolheu! Adeus, Ebenezer.

Scrooge

Espírito, diga-me, o que aconteceu depois com Isabel.

Espírito

Alguns anos depois Isabel se casou e teve muitos filhos. Você amava seu ouro mais do que aquela preciosa moça e a perdeu para sempre.

Scrooge

Chega! Chega. Não me mostre mais nada. Por que você tem o prazer em me torturar?

Espírito

Lembre-se, Scrooge, quem traçou seu caminho foi você.
(Música de mudança de cenário. Scrooge volta para sua poltrona e acorda assustado. Toca novamente o sino e aparece o segundo espírito)

Espírito

Venha. Venha cá e me conheça melhor. Sou o Espírito do Natal Presente. Nunca antes você viu alguém como eu?

Scrooge

Nunca. Espírito, leve-me para onde quiser. Ontem à noite fui obrigado a dar um passeio e aprendi uma lição que já estou usando agora. Essa noite, se tiver algo para me ensinar, permita que eu me beneficie disso.

Espírito

Venha comigo, então.
(Mudança de cenário. Aparecem as marionetes novamente com outro cenário)

Scrooge

Por que me trouxe à essa velha cabana?

Espírito

Essa é a casa do seu empregado, explorado e mal pago, Bob Cratchit. Esta é a Sra. Cratchit, mulher de Bob Cratchit. Ela está pondo a mesa, ajudada por Belinda Cratchit, sua segunda filha. Enquanto o jovem Peter Cratchit enfia um garfo na panela de batatas. Também lá estão mais dois exemplares menores da família Cratchit, um menino e uma menina.
(marionetes)

Sra. Cratchit

Onde andará o querido papai de vocês? E o irmão de vocês, o Magrinho Tim?
(neste instante entra Bob Cratchit)

Bob marionete

Ah, que ótimo! Já está tudo servido. Vamos aguardar um pouquinho que o Tim já está vindo.

Sra. Cratchit

E o pequeno Tim, como se comportou na igreja?

Bob marionete

Uma verdadeira jóia, perfeito. Não sei como, mas de tanto ficar sentado sozinho ele tem idéias e pensa as coisas mais estranhas que se possam imaginar. Quando nós vínhamos para casa, ele me disse que esperava que as pessoas o tivessem visto lá na igreja, porque já que ele era aleijado, talvez fosse bom elas se lembrarem, no dia de Natal, daquele que fazia os paralíticos andarem e os cegos tornarem a ver.

Scrooge

Mas o menino usa muletas? O que há de errado com ele?

Espírito

O menino é aleijado.

Scrooge

Mas, o Sr. Cratchit nunca me falou nada a respeito disso.

Espírito

Você alguma vez se interessou pela vida do Sr. Cratchit?

Scrooge

Veja, quantos filhos. O que eles têm para o jantar não dá para nada. São apenas algumas migalhas.
(marionetes)

Bob

Venha, Tim. Vamos comer. Feliz Natal para nós todos, meus queridos! Que Deus nos abençoe!

Tim

Nossa. Quanta coisa boa. Vamos pedir as bênçãos também ao Sr. Scrooge.

Scrooge

Diga-me Espírito, o que vai acontecer ao pequeno Tim?

Espírito

Muita coisa. Infelizmente, se essa situação não mudar, eu vejo uma cadeira vazia onde o pequeno Tim se senta.

Scrooge

Então, isso quer dizer que Tim vai...

Espírito

Morrer.

Scrooge

Ah, não, bondoso Espírito, diga que ele será poupado.

Espírito

Se essa situação permanecer inalterada no futuro, não encontraremos o pequeno Tim nos próximos Natais. E daí? Se ele tem que morrer, que morra logo e diminua o excedente populacional.
(Scrooge baixa a cabeça. Luzes apagam. Música)

Scrooge

Onde eles foram? Espírito, não se vá, tem que me falar sobre o Tim. Não se vá. (Toca o sino novamente. Aparece o terceiro espírito)

Scrooge

Você é o Espírito do Natal que virá?
(Espírito não fala nada, mas aponta para frente)

Scrooge

Você irá mostrar-me sombras de coisas que não aconteceram mas que ainda irão acontecer, em tempos que virão. Não é isso Espírito?
(Espírito balança a cabeça afirmativamente)

Scrooge

Então, diga-me. O que acontecerá ao pequeno Tim?
(Espírito aponta para Bob com a muleta nas mãos, chorando)

Scrooge

Não, eu não queria que isso acontecesse. Diga-me que tudo isso pode ser mudado.
(Cena de pessoas no escuro falando em confusão)

Pessoa 1

Não, também não sei muita coisa a respeito, nem num sentido nem noutro. Só sei que ele morreu.

Pessoa 2

Ele morreu quando?

Pessoa 3

Ontem à noite, parece.

Pessoa 2

Do que? O que ele tinha? Achei que ele nunca fosse morrer.

Pessoa 1

Só Deus sabe

Pessoa 2

E o que ele fez com o dinheiro?

Pessoa 3

Sei lá. Imagino que tenha deixado para sua firma. Para mim é que não deixou.
(risos)

Pessoa 3

Imaginem que o enterro seja de quinta categoria, porque juro que não conheço ninguém que pretenda comparecer.

Pessoa 2

Que tal se organizarmos um grupinho de voluntários?

Pessoa 1

Se servirem almoço, concordo. Se quiserem que eu vá, dêem-me comida.
(risos)

Narrador

No início Scrooge ficou tentado a estranhar o fato de que o Espírito atribuísse tanta importância a conversas aparentemente tão triviais. Convencido, porém, de que elas teriam objetivo oculto, resolveu fazer força para descobrir esse objetivo. Era muito pouco provável que dissessem respeito à morte de Jacob, seu antigo sócio, pois o fato acontecera no passado e esse Espírito deveria lhe mostrar o Futuro. Quem, em seu círculo mais próximo poderia estar sendo mencionado?

Narrador

Ficou onde estava e olhou ao redor em busca da própria imagem, só que em sua esquina costumeira havia outro homem, e embora o relógio marcasse a hora em que habitualmente ele se encontrava ali, não viu nada que se parecesse com ele entre as inúmeras pessoas que iam entrando pelo pórtico.

Narrador

O fato, contudo, não o surpreendeu tanto assim. Afinal, estava planejando mudar de vida e imaginou, esperançoso, que significasse que suas resoluções recentes haviam sido postas em prática.
(Cena nas sombras de duas pessoas falando)

Moça

Boas ou más?

Rapaz

Más.

Moça

Estamos completamente arruinados?

Rapaz

Não. Ainda temos uma esperança, Caroline.

Moça

Se ele se compadeceu temos uma esperança! Se um milagre desses acontecesse, nem tudo estaria perdido.

Rapaz

Ele já não tem como compadecer-se, porque morreu.

Moça

Ah, que alívio! (Arrependida, querendo retirar o que havia dito) Não, não era isso que queria dizer.

Rapaz

Acalme-se! Entendo você, Caroline.

Moça

E para quem será transferida nossa dívida?

Rapaz

Não sei. Mas até ficarmos sabendo, já teremos o dinheiro. E mesmo que não tivéssemos, seria muito azar o herdeiro ser tão impiedoso quanto ele. Esta noite podemos dormir tranqüilos, Caroline!

Scrooge

De quem eles estão falando, Espírito? Quem morreu?

Scrooge

Não, Espírito! Oh, não, não! Quer dizer que sou eu? Espírito, ouça-me! Já não sou o mesmo homem. Não serei o homem que teria sido se não houvesse passado por essa experiência. Por que mostrar-me isso, se não há esperança para mim Espírito? Tem piedade de mim. Prometa-me que, se eu modificar minha vida, ainda poderei mudar essas sombras.
(Apaga a luz. Mudança de cenário. Música)

Scrooge

Estou de volta ao meu quarto. Que dia é hoje? (Olha à sua volta e encontra o gaiteiro) Ei, rapaz, que dia é hoje?

Gaiteiro

Como?

Scrooge

É, que dia é hoje, meu rapaz?

Gaiteiro

Hoje? Ora, hoje é dia de Natal.

Scrooge

Hoje é dia de Natal! Não perdi o Natal.
(Scrooge se arruma e sai. Encontra os dois cavalheiros)

Scrooge

Meu caro senhor, como está passando? Espero que ontem o senhor tenha conseguido o que queria. Foi muita gentileza sua. Feliz Natal para o senhor.

Cavalheiro 1

Sr. Scrooge

Scrooge

É. Meu nome é esse mesmo, e temo que não seja muito agradável aos seus ouvidos. Permita-me que lhe peça perdão. E será que o senhor teria a bondade... (Cochicha no ouvido do cavalheiro)

Cavalheiro 1

Santo Deus! Meu caro Sr. Scrooge, o senhor está falando sério?



Scrooge

Peço-lhe encarecidamente! Nenhum penny a menos. Estou com muitas prestações atrasadas, deixe-me acertar o que devo. Será que o senhor poderia fazer-me esse favor?

Cavalheiro 2

Estimado cavalheiro não sei o que dizer de tanta generosidade...

Scrooge

Por favor, não diga nada. Passe em meu escritório. O senhor promete que vai passar?

Cavalheiro 2

Claro, claro que sim.

Scrooge

Obrigado! Agradeço imensamente, e que Deus o abençoe.
(Cavalheiros saem e entra sobrinha)

Sobrinha

Feliz Na... desculpe tio.

Scrooge

Não precisa se desculpar, minha pequena. Feliz Natal para você também.

Sobrinha

O quê?

Scrooge

Pensei melhor e acho que, se você ainda quiser, vou aceitar o seu convite para jantar essa noite.

Sobrinha

Se ainda eu quiser? É claro, tio. Será um prazer para nós recebê-lo lá em casa.
(Scrooge e sobrinha vão saindo)

Scrooge

Nossa! Eu havia esquecido de como você se parece com sua mãe.
(Entram narradores)

Narrador

Na manhã seguinte, Scrooge chegou mais cedo no escritório. Ah, chegou bem cedinho. Será que ia conseguir chegar primeiro e flagrar Bob Cratchit atrasado?
Era exatamente isso que ele estava pretendendo fazer.

Narrador

E conseguiu. Ah, conseguiu! O relógio deu nove horas. Nada de Bob. Nove e quinze. Nada de Bob. Bob chegou exatamente dezoito minutos e meio atrasado.

Narrador

Scrooge estava instalado em sua escrivaninha, de porta bem aberta, para não perder o momento em que ele entrasse no cubículo.

Narrador

Quando Bob abriu a porta, já vinha sem chapéu, também já havia tirado o cachecol. Num piscar de olhos, estava empoleirado em sua banqueta, de pena em punho, fazendo anotações a toda velocidade, como se tivesse a intenção de correr atrás das nove horas e alcançá-las.

Scrooge

Ei, você! Você está achando que pode chegar a essa hora, assim, sem mais nem menos?

Bob

Sinto muito, senhor! Estou mesmo atrasado, eu sei.

Scrooge

Ah, está atrasado? Está mesmo. Tenho a impressão de que está. Chegue aqui, por favor.

Bob

É só uma vez no ano, senhor! Não vai acontecer de novo.

Scrooge

Pois ouça bem o que vou lhe dizer, meu amigo! Não estou disposto a continuar engolindo esse tipo de coisa. Por isso, fique sabendo que vou aumentar seu salário! Feliz Natal, Bob! Meu bom rapaz, desejo-lhe um Natal mais feliz do que os que tenho lhe proporcionado nesses muitos anos! Vou aumentar seu salário e fazer o possível para ajudar sua família necessitada.
(Scrooge e Bob continuam conversando enquanto entram os narradores e começam a tirar a roupa do narrador)

Narrador 1

Scrooge saiu melhor do que a encomenda. Fez tudo o que tinha prometido e muito mais, infinitamente mais.

Narrador 2

E para o Pequeno Tim, que não morreu, foi um segundo pai. Transformou-se num dos melhores amigos, dos melhores patrões...

Narrador 3

Dos melhores homens que a boa e velha cidade, ou qualquer outra boa velha cidade, vila ou aldeia já tivesse visto neste bom velho mundo.

Narrador 4

Algumas pessoas achavam graça na modificação por que ele havia passado, mas ele não se importou minimamente, deixou que rissem.

Narrador 5

Pois era sábio que chegue para ter conhecimento de que nada jamais aconteceu de bom neste planeta sem que no começo aparecesse alguém para dar risada.

Narrador 6

E sabendo perfeitamente que esse tipo de gente não atem mesmo capacidade de discernimento, achou que era uma boa coisa elas criarem rugas em torno dos olhos de tanto rir.

Narrador 7

E não em decorrência de outros motivos menos atraentes. Seu próprio coração também estava rindo, e para ele, não precisava mais nada.

Scrooge

E a seu respeito sempre se afirmou que, caso se pudesse dizer que algum homem vivo detinha a capacidade de festejar o Natal, esse homem era Scrooge. E queira Deus que essa verdade possa ser afirmada a respeito de todos nós em geral, e cada um em particular!

FIM


Trilha sonora adaptada do filme “Grinch”
Figurinos do século 18 (roupa dos espíritos é bem colorida)
As cenas do passado, do presente e do futuro, que são mostradas pelos espíritos são feitas com bonecos.
Encenada no Teatro da FEP em 01/02/dez/2001.





Nota 1: Estou readaptando essa peça.
Nota 2: O manuscrito da obra foi exibido em NY, em 2010.
Leia Mais ►

Natal dos pobres











Natal…
Está um dia fosco de neblina incerta e tristeza. Para
lá as árvores despidas não bolem. A vida parou. As
nuvens andam a esta hora a rastro pelas encostas
pedregosas dos montes. Não se ouve um grito. Tudo na
natureza se concentra e sonha. Há entanto um grande
rio envolto que nunca cessa de correr…
Longe pelos caminhos, através de pinheirais
cismáticos e calados, vão velhinhas tristes, de saia pelos
ombros, para consoar nessa noite com os filhos. Andam
trôpegas léguas e léguas. As suas mãos calosas, as caras
enrugadas, onde as lágrimas abriram sulcos, os olhos
tristes, contam o que elas têm passado na vida, dias sem
pão, suor de aflições, desamparos, maus tratos…
Os cavadores deixaram os arados mortos nos
campos, que a chuva alaga. Que tudo repouse. O
vinho de hoje conforta, como as lágrimas choradas
pelas nossas desgraças, o lume de hoje aquece como o
amor de nossas mães.
Nos soutos, sob a chuva que cai mansa e continua,
andam pobres que não têm lenha, a arrancar uma raiz
esquecida, para se aquecerem. Deus os tenha na sua mão
de pai. Partem, chegam, vêm muito longe, para verem
os seus meninos, matando saudades. Quase não comem
e sustentam filhos, sustentam netos. Os velhos, que tem
atrás de si uma vida de martírio e fomes, dizem:
– É hoje o maior dia do ano…
Na lareira arde um canhoto. Cai o nevão. A cozinha
é negra, de telha vá, é negro o frio, mas as almas
sentem-se agasalhadas. Por um buraco avistam-se as
estrelas e uma pedra serve de lar. Ao estalido das pinhas,
abafadas na cinza, repartem um pão que é o suor do seu
rosto, bebem o vinho aquecido em árvores que as suas
mãos cortaram…
Sentados ao lume não falam. As brasas vão-se
extinguindo como um poente, ou como uma alma que
vai deixar-nos. A Morte passa. No buraco do telhado a
estrela reluz, o nevão cai com um ruído das flores
desfolhadas, e cada um cisma em alguma coisa de
indeterminado e vago, de longínquo; em certa hora da
vida, na mãe, num filho ausente, naquela morta que
passou seus dias a sacrificar-se por nós…
– O lume apaga-se…
– Deitai-lhe canhotos.
O lume apaga-se e as sombras da noite, em revoadas,
vêm escutar-nos atentas.
Os pobres são como os rios. Estancam a sede da
terra, fazem inchar as raízes e crescer as árvores;
acarretam; moem o pão nos moinhos. Ei-la a vida da
terra. Todas as catedrais se construíram da sua dor; sem
eles a vida pararia.
Natal dos pobres! natal dos pobres!… Porque é que
criaturas misérrimas encontram ainda na sua gélida
nudez horas para recordar e amar? Pobres repartem o
seu pão; espezinhados dão-nos das suas lágrimas. Vinho
quente! vinho quente e amargo, que sabe a aflição!
Chegam-se uns aos outros para se aquecerem. Nas
enfermarias, nos sítios onde se sofre, os míseros e os
doentes quedam-se muito tempo a cismar. Os pobres
pensam que existem seres ainda mais pobres, lares
desamparados, onde nem o lume se acende; cuidam
numa velhinha, que, a essa mesma hora, cisma,
abandonada, e sozinha, ao pé de brasas extintas no filho
doente, no filho ausente… Há cabanas nuas, lares rotos,
almas mais gélidas que o nevão.
As lágrimas que se choram e se não vêem são as
melhores: caem sobre a alma.
Sofia sobe as escadas com uma caneca de vinho
quente, para repartir com o Gebo. Na sua fisionomia há
um cansaço enorme.
A chorar, misturando-lhe lágrimas, o velho, mais
gordo e todo branco, bebe o azedo vinho quente das
prostitutas. Depois abraçados soluçam na trapeira fria.
Fora não se ouve rumor: as coisas ingeridas escutam.
Põem-se a cismar na mãe que descansa na terra
encharcada. Tudo tão triste, dias sem pão, e o amor a
prendê-los, a uni-los, mais forte que a desgraça. Não
protestam, não têm forças para gritar. Baixinho o velho
Gebo e a filha choram aquela que a terra primeiro tragou.
– Se o Senhor também nos levasse…
E Sofia bebendo do mesmo copo:
– Tenha paciência, tenha paciência…
– Se o Senhor nos levasse juntos, na mesma hora…
Cuido que não tinha tanto frio.
– Aí tem pão.
– Sabes? Eu tenho medo de morrer. Se morresse
contigo, minha filha, não tinha tanto medo.
– A mãe lá nos espera. Na cova acabam-se as
precisões e as lágrimas…
– Tudo se acaba na cova. Chegada a nossa hora,
acaba-se também a desgraça.
– Aqui tem o vinho.
Natal dos pobres, noite de comunhão, noite de
lágrimas e saudades! Não é chuva que cai sem ruído,
são lágrimas. O Gebo abre a janela e põe-se a falar para
a escuridão com palavras que a noite escuta, com
palavras que a noite leva.
Em torno da mesa de pinho ceiam as mulheres.
Com os cotovelos fincados nas tábuas, olham o vinho
quente e cismam… Ceia de natal! Ceia de natal!… Até
as prostitutas se querem lembrar… Moídas de pancadas,
têm más palavras, gritos, e um sorriso humilde. Fazem-se
pequeninas para que lhes perdoem uma vida infame.
Falam! falam!… Parece que a mesma primavera
negra fez dar emoção a estas criaturas exploradas e
servidas. Lembram-se da sua vida, sempre lágrimas, risos
sem piedade… Uma começa:
– Ninguém canta?
E logo outra, como se as palavras lhe saíssem de
golfão:
– Eu cá foi por fome que me desfrutaram. Ninguém
queria saber de mim e a minha madrasta calcava-me aos
pés.
– Eu não sei como foi…
– E eu então – continua – foi por fome. O pai estava
escarangado e a minha madrasta era tão má, que, por eu
me demorar num recado, partiu-me um braço.
– Pois eu foi assim de repente… – diz outra.
– Ia pela rua fora. Vinha da fábrica, começou a
chover e uma lama!… Tinha frio e um homem pôs-se a
falar-me ao ouvido e a levar-me. Eu nem sei como aquilo
foi… E a falar, a falar, até me doía o coração! E nunca
mais o vi. Se o vir acho que nem o conheço.
– Enganam e nunca mais querem saber.
– A mim minha mãe bem me pregava mas a gente
que há-de fazer?
– Ontem os soldados puseram-me o corpo negro –
diz uma.
E mostra a triste carne magoada, os seios murchos
e com nódoas. No ombro os ossos furam-lhe a pele.
– Quando eu morrer… oh quando eu morrer!…
– Tola!
– Que tem? Tenho ali a roupa apartada.
– A mim, enganaram-me, levaram-me… Eu não
sabia nada. Depois comecei a servir. Enganavam-me e
punham-me fora… Depois não tinha mais para onde ir…
– Eu cá tive um filho…
Uma que estava calada soluçou no escuro. E como
todas se voltassem pôs-se a rir e a ajeitar os cabelos.
– Eu tive um filho e pus-me a criá-lo.
Depois disso o meu amigo nunca mais quis saber.
Quando eu o procurava ria-se. Mostrava-lhe o
inocente e ele punha-se a rir. – Mulheres não
faltam, dizia-me. Vai-te! – E a gente fica feia. Vai
um dia e disse-me: – Se cá tornas chamo a polícia.
– Eu chorei até não ter mais lágrimas e acabou-se
tudo. São todos o mesmo. Noutro dia vi-o, mas ele
fingiu que não me conheceu.
– E o teu filho era bonito?
– Era um anjinho do céu. Tanto chorei que secou-se-
me o leite de chorar. A gente sempre e mais tola!…
Pôs-se muito chupadinho e morreu.
– A Maria já deitou um à roda.
– Eu cá se tivesse um filhinho acho que morria
por ele. Não tinha coração para o dar a criar.
– A gente não podemos ter filhos.
– Eu cá era uma inocente. Até me dá riso! Tinha
treze anos e foi logo ao entrar para a fábrica. O mestre
foi quem me desfrutou. Agarrou-me, mas eu não sabia e
pus-me a chorar. – Cala-te! se dizes, vais para a rua! –
Abandonou-me, outros vieram… A gente há-de cumprir
o seu fado.
– Eu cá fui um miminho. Meu pai tinha de seu…
Depois tudo esqueci, porque senão a gente morria. Meu
pai era muito meu amigo. Era preciso não ter coração
para o enganar. Nem ele podia supor mal de mim, nem
do outro que entrava na nossa casa. Meu pai era também
muito amigo dele e tinha-lhe valido sempre. Ainda me
lembro, quando meu pai comigo no colo me dizia: – Tu
és o meu coraçãozinho… – Eu sempre tive um colo!
Olhai: embalava-me como às crianças. – Falta-te a tua
mãe, mas eu sou a tua mãe, queres? – Era uma dor do
coração enganá-lo e nós enganámo-lo ambos. E eu bem
sabia que ele era casado, mas mentia-me…
– Porque será que os homens mentem sempre?
– Mentia-me sempre, e eu era inocente. Mentiu-me
e mentia a meu pai. O pior é que um dia fiquei
grávida. Começou o meu castigo. – Vou-lhe dizer tudo.
– Diz – disse ele. Mata-lo. Se queres diz… – Eu calei-me.
– E agora? – Agora… – Eu já lhe não queria, acho
mesmo que nunca lhe quis deveras. Foi uma desgraça.
Já estava escrito que fosse desgraçada, acabou-se!…
Depois não podia esconder o meu erro. Só meu pai não
reparava… E ele que me imaginava uma inocente!…
Esperai… – E agora? agora?… – perguntei-lhe. Então
arranjei com que meu pai me deixasse ir com ele e a
mulher para uma quinta. Se vós vísseis! A pobre da
mulher! Batia-lhe sempre, tratava-a pior que a um cão.
– Cala-te! e ela calava-se, a pobre. – Fala! – e ela falava.
– O estupor, tu não te calarás! – Ela tinha os cabelos
todos brancos e vai eu um dia perguntei-lhe quantos anos
tinha. – Trinta – respondeu-me, e calou-se. Fiquei
passada. O homem diante dela dava-me beijos para a
ver chorar. Dizia-lhe: – Vou dormir com ela, ouves,
velha? – E dormia comigo. A senhora não dizia palavra.
Chorava e punha em mim uns olhos tão tristes, que
faziam aflição. Um dia que ficámos sozinhas, ela disse-me:
– A menina há-de ser uma infeliz. – Eu chorei; e ela
com a mão nos meus cabelos, a fazer-me festas! –
Coitada! coitada, que sorte a sua tão negra!… Ainda eu…
– Porque não o deixa? – perguntei-lhe. – Já me tinha
deitado ao rio se não fossem os meus filhos.
– Ele sempre há desgraças! Às vezes mais vale ser
mulher da vida.
– Esperai pelo resto. Tive as dores uma noite no
verão, em a gosto, e a pobre da senhora é que me tratou.
Ele levou-me logo o filho. Na outra sala ouvi gritos. Vai
e atirei-me pela cama fora, sem saber o que fazia. – Onde
está o meu filho? – Fui mesmo de rastos e pus-me à
porta a escutar. Eles berravam. – Se falas esgano-te! –
dizia o malvado à mulher. – Mata-me! – tornava ela. –
Tu queres a minha desgraça? Estorcego-te! – Depois ouvi
um grande grito e fiquei como morta. – O nosso filho? o
meu filho? – Nasceu morto. – A mulher a um canto
chorou. Chorou sempre depois.
– Tinha-o matado, o malvado?…
– Tinha. Afogou-o na latrina. Depois veio a polícia.
Esperai… A criada ouvira os gritos. Sabe-se sempre
tudo, o diabo tapa dum lado e descobre do outro. Ele
fugiu para o Brasil, eu fui presa, e meu pai diante duma
ingratidão tão negra – quereis crer? – estalou-lhe o
coração. Depois… depois… A gente quando nasce já tem
a sua sina escrita.
– E a ti?… Não falas? – perguntam a uma sumida
no escuro.
– A mim enganaram-me. Foi há tanto tempo que
já me não lembra. Tudo perdi.
– E a tua família?
– A gente não tem família.
Na noite, a um canto do Hospital o velho banco
de tábuas puídas, dá-lhe também para cismar. A ventania
parou. Duma fresta tomba luar. A treva amontoa-se ao
fundo, e, para além, nos corredores abobadados, arde
um lampião. Direis que o negrume remexe: pedaços de
escuridão destacam-se, escoam-se sem ruído pelas
muralhas húmidas e espessas. Mais para o fundo há como
um abismo, vala comum de treva empastada. Os gritos
redobram; depois, por momentos o silêncio sufoca, como
o dum sepulcro.
– Se é luar que cai daquela fresta… – cuida o banco.
– Se fosse luar!
Pela escada vê-se a enfermaria onde os lampiões
em fila dão uma claridade triste, que mostra os corpos
moldados em branco, caídos nos leitos: parece uma
necrópole subterrânea e imensa.
– Se fosse luar… – Há que tempos que não sinto o
luar. Era como um ruído branco que me envolvia outrora
na floresta. Neva às vezes luar. E havia ainda outras
vozes… Sempre se sonha, quando certas noites nascem!
Era diferente… Havia rumor nas folhas e o vento dizia
aos ramos histórias acontecidas noutros montes. Há
épocas em que o vento traz noivados, ais de sapos,
frangalhos arrancados às flores… Se aquela poeira fosse
luar… E se o luar se pusesse a correr sobre mim, aquecendo-
me como outrora, quando em mim subia não sei
o quê de misterioso e forte?
Redobram os gemidos, os estertores, os gritos. Os
últimos lampiões apagam-se um a um, como se alguém
lhe soprasse. É a Morte seguindo o seu caminho. Sombras
esvoaçam. E a cova, negra, toma corpo, vive, mais
calada, maior, vala infinita, a que uma luzinha dá alma.
E o banco cisma:
– Há que tempos que não sinto em mim a luz da
manhã, que traz consigo a vida de tudo o que existe, dos
rios, das outras árvores, nem o sol a crescer em vagas de
oiro, nem a água verde, melancólica, e tão mansa entre
os choupos que parece ir vogando já morta… Sinto-me
transido… Transido? Isto é corno fogo, mas trespassa208
me de frio. E não há nevão, mas ouço sempre gritos, ais,
dores… Oh se fosse luar!… Destas enfermarias corre
também um sonho parecido com luar… Será uma fonte?…
As fontes! nem te lembres das fontes!… Aqui parece que
as minhas fibras mergulham num mar revolvido, que eu
ignoro, mas que é feito de gritos.
Baixo a pedra começa também a lembrar-se e
àquela hora perdida da noite toda a alma inconsciente
do Hospital estremece. Quer recordar, palpita e logo
esquece… Os sonhos dos doentes, dos pobres, dos tristes,
materializam-se e são como nuvens: são de fogo, são de
luar. Sombras aos bandos dissolvem-se, para outra vez
se criarem.
– Acho que sempre é luar… E quando havia sol?
Torrentes corriam pelo meu tronco, inundavam a minha
roupa cascosa e em volta numa poeira azul andava um
turbilhão de bichos. Outras árvores flutuavam na mesma
poalha e as suas folhas ou eram de sol ou todas de prata.
Longe – e que encanto aquela companhia sempre
presente e amiga! – o fio do rio chalrava. Folhas caíam e
iam devagarinho viajar sobre a água verde. Para onde?…
Debaixo de mim, até ao mais fundo das minhas raízes
quantas vidas protegi e defendi!… As minhas raízes
tocavam na vida!… Às vezes caia um pé de água, mas
depois vinham sempre teias de sol, fios de sol, para me
enredar – e o sol traz consigo um cheiro a terra e renovo
que consola, o hálito dos montes e dos pinheiros meus
amigos.
Nas temporadas fúnebres em que a água cai a
golfões, a gente concentra-se e fica meio adormecida.
Os montes envolvem-se em nuvens, os bichos na terra
tremem de frio sob as raízes e as folhas secas estalam e
gemem com saudades ao deixarem-nos. Se por instantes
se descerra a névoa, os montes são mendigos, com um
grande manto remendado. Ao fim da tarde levanta-se
dos campos um lindo luar azulado que sobe e se dispersa.
É a névoa. Baba de oiro luz na água e os choupos são
sombras. Ao longe havia um biombo verde de pinheiros,
depois montes, e depois poentes doirados… Porque é que
me ponho a pensar e a cismar? Há tanto tempo que
dormia! As minhas fibras esta noite estremecem. Há-de
ser do luar… Oh se ainda houvesse luar!
As mulheres calaram-se. Não há ruído. Elas
próprias sonham. Em torno da mesa, na cozinha
saqueada, bebem sem palavra o vinho quente. Algumas
pensam decerto num lar e bebem as lágrimas que caem
no vinho e o gelam.
– A esta hora a minha mãezinha há-de por força
pensar em mim… – começa uma.
– E tu porque não foste consoar com ela?
– Punham-me fora! queriam-me lá!… Meu pai,
meus irmãos…
– Em minha casa faz-se uma consoada muito
grande. Assam-se pinhas no lar, e minhas irmãs
pequeninas… oh minhas irmãs pequeninas!…
E sufocada desata de repente a chorar. As outras
não se riem como de costume. Só uma, sentindo que
iam todas chorar, canta:
Se vires a mulher perdida…
– Raparigas, é o fado… De que serve agora chorar?
Ninguém foge ao seu fado.
– À noite a minha mãe aquecia vinho e dava-mo
na cama. Sempre a gente é criada para uma vida! Quem
adivinha?
– Cala-te!
– Eu era o miminho de todos, eu…
– Só eu nunca tive mãe, de mim ninguém se
importa! Acabou-se! Cala-te! cala-te!…
Na escuridão as cinzas que restam num lar fazem
tristeza e saudade. Brilham, esmorecem, vão-se apagar:
são vidas que se extinguem, a alma da treva que em redor
sufoca. Assim o Prédio ao abandono, sob a enxurrada,
parecia cismar, como um rescaldo coberto de cinzas.
Parara trágico defronte do Hospital, e cansado, tal como
um pobre ao fim da vida, contempla o seu destino.
Natal dos pobres! Natal amargo dos que não têm
pão e se juntam friorentos em torno dum lume que não
aquece; natal dos seres que a desgraça usou… O vinho
enregela, o pão é duro, mas resta ainda este lume, que
jamais se apaga: – Amanhã! amanhã!…
Que poesia tão triste não vai caindo como um choro
sobre aquelas almas de misérrimos, de gebos, de
prostitutas, de desgraçados!
Numa trapeira o gato-pingado quer dizer: – Amo-te!
– mas foi sempre tão nu que não sabe exprimir o que
sente.
Na alma daquela criatura humilde, despida e
escarnecida, que tinha medo de sonhar e até de chorar,
fizera-se um clarão. Tal o espanto enternecido duma
pedra a que uma raiz se apega e que a olha deitar flor na
primeira primavera. – Fui eu, apesar da minha secura,
pensa o calhau, que a trouxe no ventre.
Sem falar, bebem juntos, ele e a pobre, o mesmo
vinho. Ele diz:
– Ambos somos desgraçados e sozinhos.
O vinho que havia aquecido dá-lho com um pedaço
de pão. Ela olha-o, tendo sempre crescido por acaso
e piedade, rota e triste. Havia pois alguém que a
amasse?…
– Bebe.
– É tão bom a gente estar junta.
– Não se tem frio.
– Esta noite, sabes?… Lembro-me de minha mãe…
Porque seria que ela me enjeitou?
Fora choram. Ela ergue-se e vê no corredor uma
rapariguinha que a mãe pôs fora da porta e que chora e
pensa.
– E se eu me deitasse a afogar?
Dá-lhe do seu pão, reparte do seu vinho e, mísera,
rota, ressequida, diz, pondo-lhe a mão na cabeça:
– Deus te crie para boa sorte…
Na terra só os pobres sabem ser desgraçados.
Meia-noite! meia-noite!… Para que tudo se crie,
para que o pó se transforme em vida, que é necessário?
Torrentes de chuva, oceanos de água. Eis a vida… Para
que do que é matéria algo de radioso irrompa, que é
preciso? Um atlântico de lágrimas.
Da matéria tem nascido à custa de gritos, de fibras
torcidas, o imorredoiro espírito. Através das idades ele
se criou, através da dor veio surgindo. O mundo espiritual
é já hoje mais vasto que o mundo material. A dor é a
primavera da vida. Para se entrar na vida ou para se entrar
na morte há sempre gritos. A dor ara o céu cheio de
estrelas e os seres humildes.
Que se cria de tudo isto? que é que se alimenta no
infinito? Destes pobres espezinhados, revolvidos, nascem
as coisas eternas – húmus, amálgama, protoplasma,
espírito lácteo, com que se constroem os mundos. Na
vala comum os seus corpos, cansados de sofrer, são a
vida da terra: as árvores, o pão, as formas, a seiva
esplendente. No infinito é da sua dor que se sustenta
Deus.
Maio de 1899 / Janeiro de 1900.
(Raul Brandão)
Leia Mais ►
 
©2007 Elke di Barros Por Templates e Acessorios